20120315


                                             Miopia Progressiva

Se for inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar satisfeito e astuto.
Pois às vezes, procurando imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores"

Com os olhos pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?
Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não está com ninguém - foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam, referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o nome que a família estava dando à instabilidade de julgamento da própria família. Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração.
Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ter a possibilidade de escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar os óculos a cada instante terminou descobrindo que até poderia arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse
Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo.
Pois prematuramente - tratava-se de criança precoce - era superior à instabilidade alheia e à própria instabilidade.
A estabilidade, já então, significava para ele um perigo
Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da prima, além de comer e ser amado.
Ela queria do menino de óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria. pois, ele conheceu uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável.
Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.

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